quarta-feira, outubro 18, 2017

Marcelo versus Costa -- o rei do Povo e o governante do País.
[Mas, antes, permitam-me umas coisas minhas, coisas de nada (mais para disfarçar do que outra coisa)]





Não que o dia tenha sido espectacular mas estou com vontade de estar bem disposta. Não foi espectacular mas também não foi deplorável. Um dia normal.

Se calhar devia dizer antes: vontade de estar mais bem disposta do que estou. A verdade é que ando um bocado impaciente. E exigente. E muito frontal. Alguns acharão que demasiado. Paciência. Vieram uns lá do norte do mundo para uma reunião e logo aos poucos minutos verbalizo aquilo que penso e que vários outros andaram a não querer ver durante meses, e logo um gelo se abate sobre a sala, e logo os outros se põem a falar baixinho uns com os outros. A coisa resolveu-se logo ali e não precisavam de ter vindo de tão longe. 

Ao fim do dia, por telefone, do carro, digo a outro que, se é para fazer só aquilo, mais vale não fazer nada. Silêncio do outro lado. Depois, pelo pigarrear, sinto-lhe o nervosismo. Fui dura. Mas é o que penso e não tenho paciência para meias palavras. Depois ouço que talvez eu tenha eu razão.

E, antes de sair, a dizerem-me que um outro anda triste, que acha que quase não lhe dou atenção. Confirmo. Mas é isso ou pôr-lhe um processo disciplinar. Silêncio, alguma inquietação. Depois reconhecem: 'Pois, de facto'.

De tarde, recebi convocatória para uma reunião. No texto, às tantas, esta pérola: '...para pudermos dar cumprimento a ....'. 


Fechei os olhos, numa de rejeição. Como: não, não quero ver. Pensei: vou rejeitar e explico que não poderei aceitar participar numa reunião em que o organizador não sabe escrever. Depois pensei: é um bom tipo, coitado, não vou envergonhá-lo desta maneira. Mas sei, ah se sei, que não perde pela demora. Erros ortográficos desta monta não digiro pelo que também não engulo. Portanto, na primeira ocasião, terei que dar-lhe uma aulazinha. 

Mais: fui convocada para outra que sei de antemão que não vai correr bem. Estou já a ver-me a fazer como se não soubesse o que estou ali a fazer e, na primeira oportunidade, a perguntar: 'Mas o que é isto? Estamos aqui a fazer o quê? Esperam que me pronuncie...? Como, se não percebo o que se está aqui a passar...?'.

Falta-me a paciência. Metade do dinheiro que se perde (ou se deixa de ganhar) nas empresas resulta da falta de jeito e/ou da falta de competências dos gestores. E estou a ser simpática para os meus congéneres porque, se quiser ser isenta, direi que é praticamente tudo. E só não é tudo porque uma parte tem a ver com a sorte ou a falta dela. 

Caraças, que falta de pachorra para tanto totó que não sabe o que anda a fazer.

Claro que também há os malucos, que não fazem coisa que se aproveite e que se acham os maiores e vá lá a gente dizer-lhes qualquer coisa, ficam a achar-se perseguidos e injustiçados. E aqui refiro-me aos malucos que há em todas as funções e não apenas na gestão. Falta de pachorra também para eles. Vontade de mandá-los para casa, para se tratarem. Mas como? Para começar, não reconhecem que estão malucos, acham sempre que os outros é que são maus e ingratos. Devia haver à entrada das empresa um detector de malucos. Aos que fossem detectados, a porta não se abria. Que felicidade que ia ser.

Enfim. 

Penso muitas vezes que isto da vida é uma mecha que se vai esgotando. Já não sou uma criança, já não tenho todo o tempo do mundo pela frente. 


O que falta é cada vez menos, pelo que há cada vez menos tempo redundante. Não me apetece gastar o tempo com tretas, com meias palavras, com enrolanços que não dão em nada. Prefiro fazer muitas coisas e despachar cada uma em três tempos. 

No outro dia estive com uma colega de quem gosto muito e que há bastante tempo que não via. Diz que está farta e a pensar atalhar a sua vida profissional. Gosta de viajar pelo mundo. Apetece-lhe isso e estar com a família e só fazer o que lhe apetece. Percebo-a tão bem.

Há aquilo dos velhos se marimbarem para a censura interna. Se calhar estou a ficar velha porque tenho cada vez mais prazer em dizer, às claras e em poucas palavras, o que penso. Percebo que a imprevisibilidade do que digo perturba um bocado. Mas tenho uma coisa a meu favor: acham que sou inteligente e, portanto, podendo o que digo deixar de queixo caído alguns dos que me ouvem, sinto-lhes o desconcerto por acharem que tenho razão.

Penso assim: 'Se não gostarem, ponham-me a andar'. E esse pensamento dá-me uma ainda maior sensação de liberdade.

E há outra coisa: enquanto aqui estou, chove copiosamente e este som refresca-me a alma. Tenho o estore de uma das janelas projectado e o vidro ligeiramente aberto. Fui até à janela. Cheira a chuva. 


Há bocado, ao jantar, o molho salpicou o top que tinha vestido. Não era um jantar de saladinhas mas, sim, um jantar apaladado. Depois de uma sopinha de legumes, tinha um gostoso osso buco estufado com abóbora, courgette, batata doce, alho francês, cebola e feijão verde. A sério: ficou muito saboroso -- não desfazendo. Mas, então, o caldo salpicou a blusinha. Nódoas. Quando acabou o jantar, pus a blusinha em detergente com tira-nódoas. Depois deu-me a preguiça de ir buscar outra e fiquei apenas de calçõezinhos. E assim estou, em topless, nesta noite chuvosa.


Então, quando fui ali à janela, senti a frescura da noite chuvosa directamente na pele e soube-me mesmo bem. Que saudades de sentir o ar fresco e molhado. Se estivesse no campo, saía porta fora e ia apanhar chuva. Bem, se calhar não porque é capaz de estar frio demais. Mas agora que falei nisto acho que vou ali pôr o braço de fora para sentir a chuva no corpo.

Já fui. Tão bom. A rua toda molhada, a água a correr no asfalto. Há quanto tempo. É bom estar aqui a escrever, a ouvir música, a ouvir a chuva. As terras precisam de água. Estão sedentas, queimadas. Penso que o ar já estava saturado de calor, a precisar de um refresco bom, limpo. E todos nós também.


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E num dia como o de hoje sei que este é um post que, provavelmente, não é o que deveria ser escrito. Mas não vi o discurso do Marcelo tal como não tinha visto a comunicação de Costa que agora vejo criticado por não ter mostrado emoção. Também não vi, senão agora mesmo, a observação infeliz da ministra na qual referiu que, se fosse demitida, iria fazer as férias que ainda não gozou. Não vi mas, se tivesse visto, também não viria para aqui pregar contra. Que a ministra tem sofrido com tudo isto não tenho dúvidas e o que me espanta é a capacidade anímica e física desta gente para, naturalmente aflita e triste, e sempre debaixo de fogo cerrado (ainda que um fogo metafórico), se aguentar. E compreendo que, num momento de descontrolo emocional, uma pessoa possa sair-se com uma frase infeliz. Também não tenho dúvidas que António Costa sente o peso da responsabilidade e sente tristeza pelos mortos e pelos feridos e não posso criticar se a forma que ele melhor encontra para se manifestar é assim, com secura, como leio que se mostrou. Cada um arranja as defesas que consegue. Deveria ter aparecido com a voz embargada, exibindo humildade e sensibilidade? Não sei responder. Cada um é como é. Não creio que alguém sinta menos apenas porque guarda para si o que é demasiado. profundo . 


Claro que Costa agora terá que fazer alterações, terá que fazer a vontade ao povo e aos políticos que preferem viver sobre a espuma dos dias a fazer trabalho sério. E terá que fazer a vontade a Marcelo, o rei do povo, que quer que alguém seja sacrificado pois sabe (é intuitivo, Marcelo) que isso aquietará a raiva popular.

Mas compreendo. São tempos difíceis em que muita gente, para melhor suportar a dor e melhor aceitar o imenso desastre, acha que é encontrando um culpado que melhor expiará a perplexidade e o sofrimento. Compreendo. Somos humanos, frágeis, temos destas coisas.

E parece que, polarizando a raiva contra a ministra, alivia mais quem sofre ou quem está solidário do que dirigir a raiva contra os criminosos que atearam os fogos. Contra esses não se ouve uma palavra. Compreendo. São muitos, não têm rosto, não nos são familiares. A ministra tem, está à vista, é um alvo fácil. É o cordeiro que deve ser sacrificado. Mas estranho. Não se vê vontade de compreender as motivações de quem atenta contra a natureza, contra a vida de pessoas e animais. A mim o que me intriga e que acho importante perceber (para melhor se tentar evitar) é o que leva tanta gente a andar pelos campos a atear fogos. Mas, lá está, isso sou eu.

E, a ser verdade o que leio e ouço agora, desagrada-me que Marcelo -- que, repito, não ouvi -- tenha alinhado com o facilitismo e a emoção primária. Se o fez, desagrada-me. Quer ser rei e tem alguma graça quando lhe dá para agir enquanto tal. Mas ser rei exige alguma elevação. A menos que queira ser o rei do chinelo no pé, a ampliar o que a rua diz, a explorar a emoção das massas, um rei de faz de conta, de carro alegórico.


Enquanto escrevo, agora, vejo a televisão a mostrar a terra coberta de cinzas, árvores cinzentas, campos esfacelados, casas derrubadas. E gente a chorar, a dizer que perdeu tudo, a descrever o medo e o horror. O sofrimento de quem viveu o horror explorado até à náusea para atiçar ainda mais o fogo da raiva. Contra isto também não vejo ninguém insurgir-se.

Mas, por não ter visto os discursos e a frase infeliz da ministra e porque, mesmo que o tivesse, pouco saberia dizer, aceitem que não me pronuncie e que me deixe, antes, estar para aqui a desfiar estes meus pequenos nadas. A mim a inquietação e tristeza não me dá para ter vontade de esbofetear aqueles que acho tão vítimas de tudo quanto as outras vítimas -- a mim dá-me para disfarçar (enquanto, cá por dentro, me recolho, num recolhimento só meu)

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In Flanders Fields de John McCrae é lido por Tom O'Bedlam

As fotografias provêm da Vogue parisiense.

A música é dos The Dead South - In Hell I'll Be In Good Company e está aqui porque a ouvi e vi o vídeo e achei piada

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